quarta-feira, maio 10, 2006

Miso Soup, ou porque o Japão deveria ter maior controle de imigração

Às vezes um autor nos consegue fazer conhecer um bairro, uma cidade ou uma paisagem tão nitidamente que parece que já estivemos lá. Os mais interessantes (na minha opinião) são aqueles que fazem isso transformando a paisagem em um personagem da sua história, em vez de perder-se em longas (longuíssimas) descrições. O cenário torna-se tão vivo e importante quanto o protagonista, tão cruel quanto um vilão.

Miso Soup, de Ryu Murakami, é um desses casos. O distrito de Kabuki-cho, em Toquio, o "bairro da luz vermelha" local, é um personagem tão vivo e interessante quanto Frank, o turista americano que contrata o guia de turismo "noturno" Kenji para conhecer todos os seus becos.

O livro conta como Kenji passa os três últimos dias do ano de 1996 com seu cliente um tanto estranho. Frank tem uma pele de aspecto plástico, conta histórias contraditórias sobre sua vida e parece ter um estranho interesse em Jun, namorada de Kenji. Ele paga bem, no entanto perder o dinheiro não é o único receio de Kenji em continuar seu trabalho. Kenji pode apenas estar sendo paranóico, devido às notícias que leu no jornal sobre uma adolescente que realizava "encontros remunerados" e que foi encontrada esquartejada apenas um dia antes.

Primeiro devo dizer que o livro não foi o que eu esperava. Não estou dizendo que foi um livro ruim, mas que não esperava uma história de suspense tétrico existencialista. Deixei-me levar pelo sobrenome do autor (Murakami, o mesmo de Norwegian Wood) e pela capa que, na versão da Companhia das Letras, parece bastante com a capa do outro. Enfim, mereci por não ter lido com atenção a sinopse. Mas foi um livro extremamente divertido de ler, e me prendeu a ponto de ter terminado a leitura em apenas 1 dia (embora agora pareçam mais).


O próximo post será sobre a sátira "Como me tornei estúpido", de Martin Page. Já terminei de ler, vou só procurar algumas citações interessantes. Mas acabei de descobrir que um dos autores preferidos do tal Martin é justamente o Haruki Murakami.

segunda-feira, setembro 26, 2005

This bird has flown

Se não é o melhor livro que já li na vida (certamente há melhores e mais célebres), Norwegian Wood foi o que mais gostei de ler até hoje. Devo admitir também que grande parte disso deve-se ao fato de eu me identificar tanto com Toru Watanabe.

Murakami também escreveu alguns dos diálogos mais prazerosos de se ler, como você pode ver no trecho transcrito no post abaixo. É um livro que em nenhum momento cansa ler, ao mesmo tempo que não é aquele que te deixa cansado no dia seguinte por não ter conseguido largá-lo quando já eram 2h30 da manhã.

É aquele livro que você sabe que estará na sua mochila ou no seu criado-mudo te esperando, para quando você precisasse, e você tem todo o tempo do mundo e toda a liberdade do mundo de lê-lo em seu próprio tempo. Da mesma forma que Toru espera Naoko. Da mesma forma que Midori espera Toru.

Certamente um livro para reler. Tenho, na verdade, um projeto para ele: fazer-lhe a trilha sonora, com todas as referências musicais nele contidas, que vão de Beatles (já no título) a The Mammas and the Pappas, passando por Burt Bacharach e bastante Tom Jobim.

Eu tinha, na fila, Apresentação da Filosofia, de André Comte-Sponville. Quero muito lê-lo, mas o que quero agora é continuar fugindo da realidade. Continuarei na ficção. Talvez vá atrás de outro Murakami (Dance, dance, dance), mas tenho medo de me decepcionar.

Edit: Há uma certa resistência de minha parte em colocar o livro na estante de LIDOS... ¬¬

terça-feira, setembro 13, 2005

Toru e Midori - people are strange when you're a stranger

-Sabe aquele domingo que você foi à minha casa e me beijou? - perguntou Midori. - Eu pensei bem e cheguei à conclusão de que o seu beijo foi excelente.
-Melhor assim.
-"Melhor assim" - arremedou midori. - Seu modo de falar é mesmo esquisito, sabia?
-Será mesmo? - duvidei
-De qualquer forma, pensei naquela hora como seria maravilhoso se aquele fosse o primeiro beijo que eu tivesse dado num homem em toda minha vida. Se tivesse o poder de reverter a ordem dos acontecimentos, eu faria dele o meu primeiro beijo. Sem sombra de dúvida. E viveria todo o resto dos meus dias pensando alguma coisa assim: o que Toru, o homem que me beijou pela primeira vez na vida, estaria fazendo agora? Isso mesmo aos 58 anos de idade. Não seria fantástico?
-Deve ser - falei removendo a casca de um pistache.


(...) duas páginas e 2 vodca-tônicas depois (...)


-Ei, Toru, sabe o que eu gostaria de fazer agora?
-Nem imagino.
-Primeiro, me refestelar numa cama grande e fofa - disse Midori. - De bem com a vida, bêbada, nenhuma bosta de jumento ao redor, e você estirado ao meu lado. Aos poucos, você tira a minha roupa. Muito delicadamente. Devagar, do jeito que uma mãe tira a roupa de uma criança.
-Hum - falei.
-Até certo ponto eu me sinto bem e meu pensamento vagueia. mas de repente eu me dou conta do que está acontecendo e grito: "Não faça isso, Toru!" E digo: "Eu gosto de você, mas há outra pessoa agora na minha vida. É impossível! Você bem sabe como eu sou convencional para essas coisas. Por isso, pare, por favor." Mas nada de você parar.
-É claro que eu pararia.
-Eu sei. Não ligue, é só uma fantasia - explicou Midori. - E então você me mostra aquilo. Totalmente duro. Eu cubro imediatamente os olhos, mas mesmo assim o vejo por uma fração de segundo. "Não, por favor, essa coisa dura e grande nunca vai entrar em mim", digo.
-Não é assim tão grande. É de tamanho normal, se quer saber.
-Não estrague minha fantasia. Então, seu semblante se entristece por completo. Você parece tão infeliz que eu tento consolá-lo. "Tadinho, não fique assim."
-Está me dizendo que é isso que você quer fazer agora?
-Isso mesmo.
-Ó Deus - suspirei.


(...) uma página e mais 3 vodca-tônicas depois (...)


-Sabe o que eu gostaria que acontecesse agora? - perguntou-me Midori na hora de nos separarmos.
-Não faço a mínima idéia do que se passa pela sua cabeça - respondi.
-Quero que você e eu sejamos capturados por piratas. Eles nos despiriam e nos poriam de frente um para o outro, nus, amarrados com cordas.
-Por que fariam isso?
-Porque são um bando de pervertidos.
-Você me parece mais pervertida do que eles - falei.
-Eles nos abandonariam no porão do navio, dizendo para nos divertirmos amarrados daquele jeito, pois voltariam uma hora depois para nos jogar no mar.
-E então?
-Então nós nos divertiríamos por uma hora. Rolando pelo chão, nos contorcendo um em cima do outro.
-É isso o que você mais quer fazer neste momento?
-Isso.
-Ó Deus - falei sacudindo a cabeça.

in MURAKAMI, Haruki. Norwegian Wood. pp. 210 a 215
'A Insustentável Leveza do Ser' é um livro ótimo do começo ao fim. Mas é no fim, com o sorriso de Karenin, que o nó realmente se instala na garganta. Agora, só agora, o filme. E, finalmente, começar Norwegian Wood.

Borderline happiness

Em 'A Insustentável Leveza do Ser', logo que Franz deixa sua mulher, Marie-Claude, para ficar com sua amante Sabina, e esta o abandona por temer tornar público aquele relacionamento que ela apreciava tanto pelo seu caráter privado, ele se vê sozinho e pela primeira vez independente, de sua mãe, de Marie-Claude, de Sabina, e de sua filha Marie-Anne, e após um breve momento de desatino experimenta uma sensação de liberdade e uma felicidade, um bem-estar, uma alegria que seriam impossíveis se tivesse continuado sua vida como estava.

No momento em que Sabina resolveu deixar-lhe, ela lhe deu a vassoura com que varrer todas as responsabilidades e interdependências. Tornou-se um espírito livre, por assim dizer. Desprendeu-se de seu antigo grande apartamento burguês, foi viver num combinado com uma de suas estudantes. Casar-se-á com ela.

Balela.

Para mim, o que ele está experimentando é o que eu vou chamar (talvez erroneamente) de borderline happiness. Felicidade limítrofe. Ela se estabelece num momento em que a pessoa não vê outra saída a não ser forçar-se a sorrir, uma espécie de euforia induzida pela iminência da depressão. Mas manter-se assim é como tentar andar sobre papel-arroz; o que a mantém neste estado de euforia (e a impede de cair em depressão) é uma frágil superfície que pode se romper à menor turbulência.

Proposta

Despretensiosamente, a idéia é falar um pouco sobre os livros que tenho lido. Comentários, trechos interessantes...

Nada que vá estragar sua surpresa, prometo.

Vou começar pelo 'A Insustentável Leveza do Ser', de Kundera. Tinha publicado no meu outro blog, mas já com o intuito de criar este.

As atualizações virão de acordo com a minha disponibilidade de leitura... certo?

Eventualmente coloco uma atualização dos livros que estiverem na fila.